
Há cerca de 500 anos, o povo Tawantinsuyu (ou Império Inca, como preferir) começava mais uma edição de seu ritual, o Capacocha. O processo começava como sempre: três crianças – podiam ser nobres ou de origem humilde – eram escolhidas de uma das quatro províncias e levadas para viver entre a elite na capital, Cusco. Neste caso, o grupo era composto por uma garota de aproximadamente 11 anos e outras duas mais novas, um menino e uma menina com cerca de três anos.
Ao longo de dois anos, a mais velha seria vista e atendida por muitos na alta sociedade inca, incluindo sacerdotes. Junto aos outros dois, seus consortes, ela também fazia turnês entre as províncias acompanhada de nobres, guerreiros e religiosos. A dieta também mudaria muito, com os três passando a comer carne e outras iguarias a que não teriam acesso antes.
Cerca de dois anos depois, e um mês antes da etapa final, as três crianças iniciaram a longa viagem até Llullaillaco, um vulcão que se situa na fronteira entre Chile e Argentina, e que hoje é considerado o sítio arqueológico mais alto do mundo. Seriam cerca de 1.500 km pela costa e pelas montanhas até atingir o destino.
Nem sempre o Llullaillaco era o destino: o Capacocha também podia ser realizado em outras montanhas importantes do império. Mas, no caso dessas três crianças, a escolha pelo vulcão se provou essencial para que o ritual fosse compreendido algumas centenas de anos depois.
Nesse trajeto, que durava cerca de um mês, as crianças eram alimentadas com álcool e folhas de coca, provavelmente para se tornarem mais suscetíveis ao seu destino. A combinação dos entorpecentes e da altitude causava uma sensação sedativa, com os três ganhando e perdendo a consciência repetidamente.
Ao chegar ao santuário inca no topo do vulcão, as crianças eram colocadas para dormir e alocadas em suas sepulturas. A morte vinha naturalmente, sem violência — talvez pelo frio. Mas, de acordo com a crença dos incas, o que elas atravessavam não era a morte, e sim um reencontro com seus ancestrais, de modo que, juntos nas alturas, todos passariam a proteger as vilas e comunidades incas.
Uma história mumificada
O Capacocha não tinha uma frequência específica. Era realizado em ocasiões especiais, como a morte de um imperador, grandes desastres naturais e eventos astronômicos. Geralmente, seu objetivo era pedir favores ou agradecer aos deuses, especialmente à divindade principal, Inti (o deus Sol). Costumava ser realizado nos meses de colheita.
O termo “capacocha” combina duas palavras do quéchua: capac (que significa “real”) e cocha (que significa “lago” ou “corpo d’água”). Quando usada junto com capac, a palavra cocha parece se referir à água como fonte de fertilidade. Assim, o termo capacocha pareceria ter sido uma forma dos incas expressarem o conceito de sacrifício humano como uma oferenda real associada à fertilidade.
As três crianças que descrevemos foram encontradas em 1999, em uma expedição liderada pelo arqueólogo estadunidense Johan Reinhard. Seus corpos foram mumificados naturalmente pelo ambiente de pouco oxigênio (cerca de 10%), pela baixa temperatura (-12 ºC) e pelas cinzas do vulcão.
Extremamente bem preservadas, as crianças ganharam apelidos: a mais velha é a Donzela, o garoto é o Garoto e a outra é a Garota do Raio, pois acredita-se que seu corpo tenha sido atingido por um raio em algum momento ao longo dos séculos, algo que é indicado por queimaduras visíveis. Especula-se que o Menino talvez tenha morrido antes de ser colocado na sepultura. Na época da morte, a Donzela tinha 13 anos e os outros dois, quatro ou cinco.
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Os corpos foram meticulosamente preparados. A Donzela foi colocada de pernas cruzadas e está curvada para a frente em uma posição relaxada. Seu cabelo foi trançado de forma elaborada e, ao seu lado, havia um adorno de cabeça feito com penas indicando sua importância na cerimônia. O Menino tem uma coroa de penas brancas na cabeça e está vestido com uma túnica vermelha. A Menina do Raio veste roupas incas femininas tradicionais, mas não recebeu o mesmo cuidado da Donzela — faltam a ela as tranças no cabelo e o adorno.
Junto às crianças nas sepulturas foram colocados 146 objetos, como pequenas estátuas de ouro, prata e tecido. Todas as peças artesanais são de alta qualidade, feitas por artistas qualificados. As crianças precisariam desses objetos para sobreviver em sua próxima vida, e era importante mostrar aos deuses essas representações. As conchas, por exemplo, foram encontradas com as meninas e representavam fertilidade. Com o menino, havia lhamas em miniatura. Havia também diversas peças de artesanato (vasos, pratos, panelas) e muitas pequenas esculturas em formato humano, decoradas com roupinhas de tecido.
A partir dos cabelos dos três, foi possível fazer testes e detectar a mudança de dieta que comentamos no início. Os cientistas descobriram que as crianças vinham de uma origem camponesa pois sua dieta consistia principalmente de vegetais comuns, especialmente batatas. Mas, no ano que antecedeu suas mortes, elas passaram a comer alimentos melhores, incluindo milho e carne seca de lhama, e pareceram ter sido engordadas em preparação para o sacrifício.
A equipe também descobriu que as crianças mais novas ingeriram folhas de coca e álcool de forma constante ao longo dos meses de preparação, mas que a Donzela consumiu significativamente mais coca em seu último ano, com o pico de consumo ocorrendo aproximadamente seis meses antes de sua morte. Já o consumo de álcool atingiu o pico nas últimas semanas de vida.
Atualmente, as múmias estão preservadas no MAAM (Museu de Arqueologia de Alta Montanha), localizado em Salta, na Argentina. Para que não se degradem, são preservadas com técnicas baseadas nas condições encontradas no cume do Llullaillaco.
“Apenas uma criança fica em exibição por vez, sendo trocada a cada seis meses para minimizar movimentos e mudanças de condição. Elas são mantidas em uma cápsula de alta tecnologia, monitorada 24 horas por dia para qualquer alteração, como redução de peso (o que indicaria desidratação) ou escurecimento da pele (indicando oxidação). A atmosfera em que são mantidas é composta por 98% de nitrogênio e 2% de oxigênio, a uma temperatura de -20 °C”, descreve em seu blog a aventureira Kate Leeming.
O Império Inca acabou no século 16 com a chegada dos espanhóis, o que indica que as três crianças mumificadas fizeram parte de um dos últimos rituais Capacocha antes da colonização. Hoje, elas são a memória preservada de uma das civilizações mais importantes das Américas.
(Por Victor Bianchin)