Cordão primário e pingentes de quipu inca, um tipo de sistema de registro baseado em cordões e nós para contabilizar bens, registrar eventos astronômicos e, possivelmente, coletar impostos — Foto: Hyland/Universidade de St. Andrews

Um cordão de 500 anos – com pouco mais de um metro de comprimento e feito com fios de cabelo humano – pode dar nova luz ao registro de informações no Império Inca, o maior império das Américas antes da chegada de Cristóvão Colombo.

O artefato em questão é um quipu (ou khipu), um tipo de sistema de registro baseado em cordões e nós para contabilizar bens, registrar eventos astronômicos e, possivelmente, coletar impostos. Como destaca a NPR, por anos, a tradição acadêmica atribuiu a produção desses objetos a um grupo restrito de homens da elite, os khipukamayuqs, oriundos de famílias nobres. Mas este quipu, adquirido recentemente pela Universidade de St. Andrews, na Escócia, em um leilão, e com idade estimada em cerca de 1498 d.C., contou uma história diferente.

Ao contrário do padrão de cordões feitos de lã de lhama ou alpaca, este cordão principal era feito inteiramente de cabelo humano: um fio de 104 centímetros, dobrado e torcido. A equipe responsável pelo achado acredita se tratar de um material com profundo significado simbólico no mundo andino, carregando a “essência” de quem o doou.

Estudo do quipu

A análise química liderada pela pesquisadora Sabine Hyland examinou carbono, nitrogênio e enxofre ao longo do comprimento do cabelo, revelando que o dono das madeixas teve uma dieta composta majoritariamente por tubérculos, leguminosas e grãos, com pouca carne, pouco milho e nenhuma evidência de peixe. Isso indicou que a pessoa vivia longe da costa e tinha hábitos alimentares típicos de um plebeu, e não de um membro da elite.

Ou seja: a tarefa de fazer registros usando os quipus, antes tida como algo nobre, também pode ter sido feita por pessoas de linhagens mais simples. O método de contagem via quipus é uma das principais evidências que se têm sobre a economia e contabilidade durante o Império Inca. Afinal, os incas eram um civilização oral, que não tinham o hábito de deixar registros escritos.

No caso dos quipus, o comprimento de cada cordão, o número de nós e bolinhas presentes neles e a distância pela qual eles estão separados poderiam indicar informações importantes sobre quantidades, datas e o tipo de material armazenado, por exemplo.

Ponta solta do cabo primário de onde uma amostra foi retirada para análise — Foto: Universidade de St. Andrews
Ponta solta do cabo primário de onde uma amostra foi retirada para análise — Foto: Universidade de St. Andrews

“Foi um choque total”, relata Hyland à Science News. “Meu palpite é que era usado para registrar oferendas rituais. Deve ter sido algo muito especial para a pessoa sacrificar o seu próprio cabelo”.

O achado, cujos detalhes foram compartilhados nessa quarta-feira (13) na revista Science Advances, é inédito. Embora fios humanos já tenham sido observados em quipus, este é o único exemplar da era inca cuja corda principal é feita inteiramente desse material.

Implicações da descoberta

Se comprovada, a hipótese de que plebeus também produziam quipus desafia a visão tradicional herdada dos cronistas espanhóis, que descreviam o sistema como um privilégio da elite. Isso aproximaria a prática da produção de quipus modernos, ainda confeccionados entre comunidades camponesas andinas para registrar informações agrícolas ou acompanhar ritos funerários.

A análise química do cabelo revela que ele veio de uma fonte surpreendente: um plebeu e não, como esperado, uma pessoa da elite — Foto: Universidade de St. Andrews

A análise química do cabelo revela que ele veio de uma fonte surpreendente: um plebeu e não, como esperado, uma pessoa da elite — Foto: Universidade de St. Andrews

Além disso, a questão abre caminho para se iniciar um processo de revisão e reinterpretar de coleções inteiras mantidas em museus.

Para Hyland, a peça é mais do que um objeto bonito ou curioso. Ele representa uma conexão física direta com a mão e a vida de alguém que viveu há mais de meio milênio – possivelmente uma pessoa que, por não circular pelas elites, não foi contemplada na narrativa padrão dessa população.

(Por Arthur Almeida)