Cães de trenó da Groenlândia puxam um trenó pela paisagem ártica enquanto sua genética revela segredos milenares da ocupação humana no extremo norte — Foto: Taken/ Pixabay

Os cães de trenó da Groenlândia, conhecidos como Qimmit (singular Qimmeq), são mais do que companheiros de trabalho para o povo inuíte, eles carregam em seus genes pistas valiosas sobre a história humana no Ártico. Um estudo publicado em 10 de julho, na revista Science, revela que esses animais, criados para resistir ao clima extremo, indicam que os humanos chegaram à Groenlândia há cerca de mil anos, muito antes do que se acreditava.

A pesquisa, liderada por cientistas do Instituto Nacional de Pesquisa do Genoma Humano, nos Estados Unidos, e da Universidade de Copenhague, na Dinamarca, analisou o DNA de 92 Qimmit, incluindo amostras modernas de saliva e materiais antigos de museus, como ossos e pelos de até 800 anos. Os resultados mostram que esses cães compartilham um ancestral comum que viveu há aproximadamente um milênio, sugerindo que seus parceiros humanos já estavam na ilha nessa época.

“Se temos alguma curiosidade sobre nós mesmos, sobre nós como humanos, temos que entender os cães”, afirma Audrey Lin, bióloga evolucionista do Museu Americano de História Natural, em Nova York, em entrevista ao Science News.

Cães espelham a história humana

Há 9.500 anos, esses animais já eram essenciais para a sobrevivência humana no Ártico. Sua presença contínua na região polar atesta sua importância histórica e cultural. Entre as diversas raças de cães de trenó existentes hoje, uma se destaca não apenas por sua antiguidade, mas por possivelmente ser a linhagem canina mais antiga do mundo. No entanto, as mudanças climáticas e outras pressões da vida moderna colocam em risco esse legado milenar.

Eles ainda estão ativos hoje, mas seus números estão diminuindo rapidamente. Isso se deve à perda de neve e gelo na região, bem como à crescente dependência de motos de neve modernas, que viram seus números despencaram de cerca de 25 mil cães em 2002 para apenas 13.000 em 2020, de acordo com o estudo. Essa rápida queda nos números tem sido um sinal claro para os cientistas preocupados com o futuro dos cães, resultando em uma necessidade urgente de documentar sua diversidade genética restante para embasar os esforços de conservação.

Ligação com o passado ártico

A equipe descobriu que esses cães formam um grupo distinto de outros cães árticos antigos, especialmente um cão do Alasca de 3.700 anos. Essa descoberta não apenas demonstra uma continuidade genética para os cães, como também reforça uma teoria relacionada à história cultural humana sobre uma rápida migração do povo inuíte do norte do Canadá para a Groenlândia. Esses dados sugerem que a migração ocorreu cerca de 200 anos antes do século XII d.C., como comumente se pensa. Isso reforça o argumento de que as populações inuítes chegaram à Groenlândia antes dos viajantes nórdicos.

A colonização nórdica na Groenlândia durou até o século XV d.C., que então marcou o início de um período de separação entre os habitantes da ilha e os europeus. No entanto, colonos dinamarqueses-noruegueses estabeleceram um posto comercial em Kitaa no início do século XVIII. Isso levou a um aumento nas interações entre europeus e inuítes. Apesar disso, os resultados deste estudo mais recente mostram que houve muito pouca mistura genética entre os cães Qimmit e os cães europeus. Em vez disso, esses cachorros se enquadram em quatro grupos genéticos que podem ser correlacionados à dispersão geográfica dos humanos pela ilha.

Pesquisadores coletam amostras de DNA de um Qimmeq cuja linhagem remonta a 1.000 anos atrás, desvendando a história compartilhada entre humanos e cães no Ártico — Foto: Sr. Bonde/ Pixabay
Pesquisadores coletam amostras de DNA de um Qimmeq cuja linhagem remonta a 1.000 anos atrás, desvendando a história compartilhada entre humanos e cães no Ártico — Foto: Sr. Bonde/ Pixabay

Os Qimmit, cães árticos de grande porte e pelagem espessa, semelhantes aos huskies e malamutes, tradicionalmente usados para puxar trenós em regiões congeladas. Diferente de outras raças que passaram a ser animais de companhia, os Qimmit ainda são usados principalmente como cães de trabalho. “Mas o cão de trenó da Groenlândia ainda é usado praticamente exclusivamente como cão de trenó hoje em dia”, diz Tatiana Feuerborn, paleogeneticista do Instituto Nacional de Pesquisa do Genoma Humano, nos Estados Unidos.

Segundo ela, os Qimmit seguem sendo parte essencial da cultura do povo inuit. Anders Johannes Hansen, microbiologista evolucionista da Universidade de Copenhague, reforça esse papel: “[O povo inuit da Groenlândia] sabe como é um bom cão. Eles selecionaram criteriosamente a aparência que acreditam que um bom cão de trenó deve ter.”

Os resultados mostraram que os Qimmit têm pouquíssima mistura com raças europeias, evidenciando um isolamento genético de longo prazo. Também foi possível identificar quatro grupos genéticos principais, que coincidem com divisões geográficas e culturais entre os grupos humanos da Groenlândia. Para os cientistas, isso indica uma relação estreita entre os cães e seus companheiros humanos ao longo dos séculos.

As análises genéticas também revelaram que todos os Qimmit estudados compartilham um ancestral comum com uma população de cães do nordeste da Groenlândia que foi extinta. Esse ancestral teria vivido há cerca de mil anos, o que, segundo os pesquisadores, recua a data da primeira presença humana conhecida na ilha. “Você nunca sabe quando um cachorro vai sair correndo e mudar a história para você”, comenta Feuerborn.

A descoberta fortalece a hipótese de que os inuítes chegaram à Groenlândia antes dos colonizadores nórdicos. Além disso, os Qimmit apresentaram forte ligação genética com um cão de 3.700 anos encontrado no Alasca, sugerindo uma migração inuit rápida do Alasca até a Groenlândia, possivelmente em poucas gerações. “A forte conexão genética entre esses cães da Groenlândia e os cães do Alasca demonstra o quão estreitas são as histórias em todo o Ártico”, diz Feuerborn.

O estudo também forneceu informações valiosas sobre a saúde genética dos cães. Apesar da baixa diversidade genética, os Qimmit não apresentam altos níveis de endogamia, característica comum em outras raças modernas e que geralmente leva a problemas de saúde. Segundo Audrey Lin, esses cães são saudáveis e demonstram notável capacidade de adaptação ao ambiente ártico, com desempenho equivalente ao de outros cães de trenó de trabalho. Essa característica, conforme a pesquisadora, indica a possibilidade de manter populações caninas de trabalho vigorosas de forma sustentável.

(Por Carina Gonçalves)